quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Estou melhor cá dentro


“O Homem é a sua liberdade e está condenado a ser livre” - Jean-Paul Sartre

Há tempos fui ao Estabelecimento Prisional. Costumo lá ir por causa de um projecto que desenvolvo em parceria com aquela instituição. É giro. Tem-me dado para ver coisas que de outro modo nunca veria, como por exemplo a relação extraordinária que existe entre as pessoas que guardam as pessoas que estão “guardadas”. Aquilo não é fácil. Às vezes sinto no ar energias estranhas. Energias que só me lembro ter sentido quando cumpri o serviço militar obrigatório e que aparentemente não tem nada uma coisa a ver com a outra.

Pois um dia estava eu dentro da prisão, em trabalho, claro, e quando digo dentro da prisão é mesmo lá dentro. Atrás das grades. Atrás das portas que se abrem e fecham com chaves enormes, de ferro. Agora já estou mais habituado mas ao princípio foi uma experiência intensa. É sempre assim. Um novato é um novato. É sempre posto à prova. Nunca me senti ameaçado, mas nunca estive sem acompanhamento constante. Ouvi de tudo nos primeiros dias. E não foi só naquele estabelecimento prisional, não senhor. No dos homens também ouvi. Credo. A imaginação aliada aos documentários que se vão vendo na televisão fazem-me temer o pior se por agum infortunio me visse com o corpo atrás das grades. Adiante...

Ora como dizia e por causa do tal projecto, estava eu no que é chamado o “Atelier de Costura”. Estão lá mulheres portuguesas, argentinas, columbianas, brasileiras, chinesas - estas distinguem-se pelo silencio e velocidade de trabalho. Há de tudo um pouco, como na vida. Umas mais velhas outras mais novas, e enquanto eu conversava com a guarda responsável acerca do estado do país, do governo, da justiça, dessas coisas todas que eu e ela vamos sentindo um pouco na pele aqui e ali, por isto ou por aquilo, eis que vindo assim do nada, uma das mulheres que estava a costurar mas pelos vistos atenta à nossa conversa, comenta sem tirar os olhos da máquina, e não há aqui uma tentativa de romancear a coisa, foi assim tal e qual, nem olhou para nós... - “Pois eu estou melhor cá dentro! Pelo menos aqui ninguém me chateia.”

Desde que iniciei o tal projecto que imaginei um dia poder ouvir dizer algo do género. Mas dito assim das duas uma, ou aquela pessoa tinha uma vida miserável antes de ser presa (não era o caso que eu soube) ou de facto a vida “lá fora” está tão corrompida que a cadeia serve para não deixar sair, mas também para não deixar entrar as misérias que se passam na democracia livre em que vivemos.

Ainda hoje me ecoa na mente. Não foi dito com raiva nem nada. Mas como disse Laborinho Lucio na entrega do Livro “Para Além da Prisão” do Ministério da Justiça, aquela mulher está “momentaneamente privada da sua liberdade” mas mantém os seus deveres, obrigações e direitos. Vá-se lá entender, o enclausuramento involuntário é estranhamente parecido com o voluntário. E neste momento de tantas incógnitas sobre o futuro da sociedade ouvir um comentário assim... não sei. É estranho...

Beijinhos e essas coisas,

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