segunda-feira, 23 de julho de 2012

O homem e a formiga



Há tempos a minha vida mudou outra vez. Sou daquelas pessoas que retém a memória da vida passada de acordo com sensações. Hoje já me sinto mais confortável em aceitar que sou assim, distraído com muitas coisas mas atento a outras. Normalmente estou mais atento ao pormenor, ao detalhe, à diferença, aquela estranha sensação que sinto quando confrontado com algo ou alguém. Reconheço que vivo de acordo com a soma do legado indivisível, da experiência vivida, mas também da (felizmente) curiosidade que nunca me deixou crescer. Não obstante cresci e sou um homem. Moldado pela sociedade em que habito para me portar como um homem. Sejam quais forem as opções políticas ou religiosas eu sou um homem e se não me portal como tal sou um tolo. Um marginal, indigente, alguém que não age de acordo com as normas estabelecidas pela maioria para que possamos viver em harmonia o mais possível. Haverá sempre marginais para nos lembrar todo o espectro da génese humana. Só assim se compreende a condição humana – pela diferença.

A minha vida mudou outra vez porque assim teve que ser. Já com o Bernardo foi diferente. O Bernardo interrompeu o que seria o normal curso da sua presença em quanto ser social. Eventualmente ter-se-á transformado em outra coisa qualquer. Há quem acredite nisso. Eu acredito, e acredito que há um Céu, chamemos-lhe assim. E que enquanto eu cá andar o resultado das minhas vivências refletir-se-á algures. Deve ser. A mim faz-me sentido que assim seja. Nem que seja pelo facto de ao acreditar nisso tento ser o mais… como direi? O mais… como o meu avô. É isso, se eu for como meu avô irei para o Céu com toda a certeza. O meu avô também mudou de vida algumas vezes. Algumas eu vi, outras ainda não tinha nascido e por isso ouvi. E ainda oiço através da minha mãe e de outras pessoas que falam dele. Um homem íntegro e com “coluna vertebral”. Gosto dessa expressão. Sempre a conheci e sempre a ouvi, curiosamente dita muitas vezes pela filha dele, minha mãe – “Ou se tem ou não se tem coluna vertebral”.


Eu peco. Pequei e o mais provável é voltar a pecar. É inerente à minha condição de ser vivo, de ser-social, e não serão os pecados que cometi que não me deixarão entrar no Céu, assim espero. Já as formigas, por exemplo, que também vivem em sociedade, têm livre-trânsito, pois mas não têm inveja – simples! Trabalham para o bem comum independentemente da sua condição. E é extraordinário pensarmos que se as formigas fossem do nosso tamanho este planeta não chegava para elas – são imensas. No entanto prevalecem independentemente do tamanho, estoicamente, contra todas as probabilidades e sem que demos por isso. Já nós temos esta terrível obstinação de competirmos sempre como se a vida disso dependesse. Ganhar mais dinheiro, correr mais depressa, saltar mais longe, mais alto, nadar mais depressa, aguentar mais tempo, como nos Jogos Olímpicos! Um espetáculo internacional que põe à prova o “mais que tudo” do genoma humano – uma loucura! O que pensarão as formigas disso? Haverá formigas a correr desesperadamente para vencer as outras todas, para serem indiscutivelmente as melhores?

A minha vida tem sido uma viagem, uma aventura cheia de experiências e sensações. Gosto de ser quem sou e prevejo para mim mais coisas extraordinárias simplesmente porque estou vivo. A partir de agora sei que quero ir para o Céu - quero mesmo. E para isso tenho que ser uma boa pessoa enquanto cá andar neste corpo. Já outros coitados, não compreendo. Era tão fácil. Bastava serem como as formigas e não serem invejosos – simples!

Beijinhos,

segunda-feira, 16 de julho de 2012

A partícula de Deus



Há tempos aconteceu-me algo extraordinário, mesmo! Algo incompreensível, uma bizarra sucessão de acontecimentos de tal maneira inacreditável a infinita possibilidade de tal poder acontecer, que não conseguindo imaginar sem por sombra de qualquer dúvida o responsável de tamanha façanha, remeto para  Deus de modo a fazer-me entender… simplesmente!

Roubaram-me o carro! Suponhamos que é o nascimento de cristo, ok? Existe um antes e um depois, certo? Antes de me roubarem o carro e depois de me roubarem o carro. O carro apareceu entretanto. Foi um indigente que vive por ali na zona onde resido que agarrou a oportunidade do carro destrancado com a chave lá dentro e que durante dois meses e pouco viveu literalmente dentro do carro, até que foi apanhado. Para além do cheiro a corpo compreensível e alguma sujidade o facto é que estava tudo na mesma. O cinzeiro limpo, os postos do rádio, os óculos, tudo. Ora, seria suposto eu desejar qualquer coisa de mal ao pobre homem, mas não consigo. Será isto a compaixão?

Passados dois dias uma senhora a quem ajudo na estrada porque com a chuva fez um peão mesmo ali à minha frente, e depois de a ajudar diz-me que sou um anjo… no meio da autoestrada. Passados dias e numa ocasião completamente diferente, o meu irmão cruza-se com o meu carro a ser conduzido por alguém numa das ruas em que circulo diariamente. Duas vezes! É impressionante! Eu já tinha feito o funeral ao carro e o meu irmão cruzou-se duas vezes com o meu carro e não o apanhou. O meu irmão não é bêbado, ia com um amigo e os dois tiveram mais que tempo de ver que era mesmo o meu carro.


Entretanto e como já me aconteceu várias vezes na vida - o fim de uma relação - um vazio que fica, um sentimento de nada ou neste caso do fim de uma relação que deixou de ser amorosa para dar lugar a outra coisa. Ou a perda de um objecto, ou de um animal de estimação, ou de um carro, ou ainda e tomando como exemplo e com todo o respeito, um ente querido. Afinal de contas coitados daqueles que nunca experimentaram a perca de um amor, ou de algo. A vida compreende a morte, certo? Não é a morte que gera vida, mas antes a vida que até das cinzas renasce se for preciso. É a vida que permite a existência da morte. Assim sendo e com o tempo, o vazio daí resultante vai-se “arrumando” e o espaço dai resultante começa a aparecer do nada. Espaço para isto, tempo para aquilo, sei lá, é uma loucura de espaço e tempo. Uma pessoa depois do luto, renasce das cinzas. Sempre me deixou curioso aqueles homens ciganos que se vestem de preto e deixam crescer a barba. Há maneiras e maneiras de gerir as percas e fazer o luto. É preciso.

Ando feliz. Assim, de repente… Quer dizer, na altura não foi de repente mas agora até parece. No período em que o carro foi roubado questionei muito a existência de Deus. Era o que mais faltava se eu não pudesse questionar Deus, como algumas pessoas chegaram a comentar. Cada um fala com Deus como muito bem entender, querem lá ver? Adiante, pois no momento em que percebo que fiquei sem carro pensei – “Já que perco o carro e vou ter de sentir este vazio, termino também a relação. Algo há-de acontecer.” O Bernardo Sasseti faleceu entretanto, logo uns dias a seguir ao roubo. Fiquei mesmo furioso com Deus. Chamei-lhe nomes e tudo. Ele é parvo ou quê? Leva lá a porcaria do carro, mas o Bernardo? E a seguir a mulher do Miguel com um cancro. “Que se lixe o carro!” – pensei, e fiz-lhe o funeral e pronto! Até nem tinha vendido o outro, foi só voltar a trocar os documentos. Durante quatro anos juntei moedas para fazer uma viagem com os miúdos, mas optámos pelo carro e continuar a juntar moedas e afinal nem viagem nem carro. Continuei com a minha vida normal, mas envolto de pensamentos estranhos até sobre a minha própria existência. Fiquei mesmo triste.

No meio de todos estes acontecimentos os meus filhos vieram passar as férias comigo. Fico sempre muito preocupado com o bem-estar deles. Adoro estar com eles e quando estou com eles parece que fico patareco ou lá o que é. São dois filhos bestiais, seres humanos de exceção. Creio que têm sido eles que me têm ajudado com as suas opiniões e comentários e até sobre este assunto observo neles uma aceitação pacífica de todo o desenrolar destes acontecimentos. Para eles aparentemente não há drama nem mistério. Para mim tem sido uma viagem, ufa!

Por vezes ocorre-me uma frase que me lembro da missa cristã – “Ele está no meio de nós!”. Já tenho 47 anos e é óptimo. Dá-me experiência e alguma sapiência. É preciso ter anos de vida e experiências diversas e profundas. É preciso experimentar por exemplo Meditação, Tai Chi Chuan, Drogas, Tango, Cientologia, Cristianismo, Sexo, Budismo, profissões diferentes, relações diferentes, comida diferente, viajar, e mais, e mais, e mais... Fazer teatro, ter filhos, plantar árvores, construir casas, ler e escrever muito, e acima de tudo é preciso saber amar e ter a capacidade e humildade de aceitar que há coisas inexplicáveis. Talvez seja essa a verdade da própria existência de tudo – a inexplicabilidade da própria existência de um principio de tudo.

Aqui sentado na sala, sozinho… a escutar os relógios de parede que sem corda param dando a estranha sensação de que o tempo também pára, já nem compreendo se estou a escrever para mim ou para alguém. Sei lá… Isto não é fácil… Parece o Matrix… credo! Mas que Ele está no meio de nós, isso eu não duvido. É só apanhá-lo e vais ver - os números do euro-milhões, já para cá!

Beijinhos.