quinta-feira, 29 de abril de 2010

A estranha sombra

Há tempos e não foi assim tanto, entro no quarto dos meus filhos e deparo-me com o meu filho de “pilita em pé” sentado na cama e a rir-se. Numa reacção que julgo meramente protectora viro-me para a minha filha que também estava no quarto, de costas para ele, e reparo nos pequenitos contornos daquilo que irão ser as mamas dela. Acho que não voltarei a olhar para as mamitas da minha filha. A minha filha tem mamitas e o meu filho é parvo. Está tudo a correr como previsto.

E como previsto, ao que parece vem aí o Papa. Essa figura estranha que é suportada por outros homens de cada vez que se quer levantar. Esse homem curioso que tem o costume de falar por uma janelita de um edíficio no Vaticano, esse pequeno mas muitissimo curioso Estado cheio de leis à margem da lei. Enfim... parece que a vinda do Papa a Portugal teve alguma interferência com a calendarização da lei que permite ou não o João casar-se com o Jorge. Ou a Inês casar-se com a Deolinda.

A Igreja e os enormes pilares em que ela assenta continua a interferir com a minha vida sem que eu tenha total consciência disso. Claro que não é a Igreja, nem tão pouco o Papa, ou a nossa senhora de Fátima. Mas antes esta sociedade arcaica em que eu vivo apetrechada com armas de destruição massiça que não abdica de ter vários credos baseados em algo que não se pode nem poderá nunca provar-se que existam ou não - Deuses. Isto é perigoso. Estamos, e farto-me de falar nisso, a viver um momento da história da humanida suigéneres. Parece que algo está para acontecer ou então já está a acontecer e nós não damos conta disso. Lembras-te da Sinead O'connor a cantora? Foi à televisão e rasgou o poster com a imagem do Papa. Nunca mais apareceu. Foi pena, ela era simpática e tinha fortes convicções. Coisa rara nos tempos que correm. Convicções.

Voltando ao princípio, era, portanto, início de sábado e estavamos os três a tomar os respectivos banhos. E depois andávamos nús ali pela casa enquanto não nos vestimos. É giro. Começa a ser um pouco constrangedor por causa da Maria. Mas ela já me conhece e sabe que o pai frequenta a praia do Meco. É uma estranha sensação de liberdade andar com a piloca ao léu e depois ir mergulhar e sentir a água a deslizar pelo corpo todo. É giro.

Curiosamente e não parecendo à partida que nada disto que te escrevo tenha algum nexo fui ver ao Dicionário de Morais o significado de preservativo. Sei lá, ocorreu-me. Talvez porque vem cá o Papa. Talvez porque os meus filhos estão a crescer. Talvez porque me lembre do desgraçado do Silvino que não sendo desgraçado nenhum é-o pelo facto de estar com os costados na prisão enquanto que outros se pavoneiam por aí. Enfim, fui ver, e tem dois sentidos, o primeiro diz “Que preserva; próprio para preservar; diz-se dos medicamentos próprios para prevenir o aparecimento de certa doença”. O segundo sentido diz “Aquilo que preserva: A sobriedade é um preservativo das doenças”


Sem que eu nada tenha contra o homem (o Papa) não deixo de me indignar e achar até curioso certas posições defendidas por pessoas que representam ideologias ancestrais e por vezes arcaicas. Bem sei que não estarei de modo algum a agradar a gregos nem troianos quando escrevo estas linhas. Mas no sábado passado fui às compras com os meus filhos e à saída do supermercado, mesmo do outro lado da rua uma série de pessoas idosas e alguns escuteiros dirigiam-se para a Igreja. A missa ía ser celebrada dali a uns dez minutos e achei interessante levar lá os meus filhos. A igreja é daquelas modernas feitas de betão armado à mostra. Até tem uma arquitetura sóbria e de aspecto leve.

Passados cinco minutos a minha filha comentou “Ó pai vamos embora que isto aqui é deprimente.” A missa ainda não tinha começado e o meu filho observava um curioso objecto colocado logo à entrada, de tom castanho, bastante sóbrio, aparafusado ao chão e que a troco de moedas de 50 centimos acendia uma lâmpada em forma de vela para que a pessoa rezasse uma oração. A lâmpada está acesa durante um determinado período de tempo e depois apaga-se. Bestial! A mente humana é de facto imensamente criativa. Não há dúvida. À saída o meu filho comentou que aquelas moedas mais as moedas das duas caixas rotuladas com “Pobres” e “Igreja” eram mas era para o Sócrates. O meu filho tem oito anos. Oito! Onde raio é que ele vai buscar estas ideias?

Começo a não saber o que fazer nem o que dizer aos meus filhos. Quem sou eu para julgar o que eles vêm, ouvem e sentem? Como lhes explico o que é ou quem é Deus e os seus critérios de avaliação e justeza. Há algo aqui que não bate certo. É cá um sentimento meu. Mas que quando confrontado pelos meus filhos com questões básicas de justiça eu custa-me cada vez mais responder-lhes pois se por um lado for honesto pareço “ernesto”, por outro lado se não for honesto que raio de pai serei?

Se algum desejo eu tenho na vida para os meus filhos é que sejam inteligentes e felizes. Só isso. O resto é lá com eles que a minha filha já me manda mensagens para eu lhe carregar o telemovel... ótimo.

Beijinhos e essas coisas,

terça-feira, 20 de abril de 2010

O dia da mãe


Nasci.

Passado um tempo e quando tinha a vossa idade o mundo era perfeito. À porta do prédio onde eu vivia passavam rebanhos de ovelhas e eléctricos daqueles amarelos velhinhos. Depois da escola, chegava a casa, largava a bata azul e a chave de casa pendurada num cordel à volta do pescoço, e ía jogar à carica com os meus amigos. E ao berlinde, e ao pião e aos polícias e ladrões. E jogávamos futebol e andávamos de bicicleta e de carrinhos de rolamentos. E no fim do dia a vossa avó chegava à janela e chamava-me para eu ir para casa ajudar a fazer o jantar. Descascar os alhos, cortá-los às fatias fininhas e alourá-lo no azeite a ferver. Lavar o arroz, escorrer e vertê-lo para cima do tacho e não ter medo de deitar o dobro da água tal é o barulho que aquilo fazia. Deitar o sal, pôr o gás no mínimo e esperar vinte minutos. E fazia muitas outras coisas que ela me foi ensinando, sempre. Talvez por causa da vossa avó nunca precisei de nenhuma mulher para me tratar do que quer que fosse a não ser respeitar e amar. Por outro lado essa “independência” permite-me observar a mulher/mãe, geradora de vida, como a coisa mais extraordinária que existe. Adiante.


Vocês nasceram.

Dei-vos os primeiros banhos, mudei-vos as primeiras fraldas, fiz-vos as primeiras papas. A primeira vez que vos cortei as unhas fez logo sangue, bolas! Foi só um bocadinho mesmo junto à unha e vocês fizeram caretas. Tratei dos vossos umbigos até caír o que restava do que vos ligou à vossa mãe enquanto ela vos transportou na barriga. Adorava dar-vos banho na banheira amarela de plástico. É curioso como os bébés têm um cheiro enebriante. Fui para o hospital quando vocês tiveram febres e diarreias. Entrei aos berros pelo gabinete da médica dentro quando ela queria que eu esperasse mas eu sabia que não podía esperar. Enquanto passeavamos pelos parques vocês começaram a andar. Sempre achei importante que vocês estivessem o mais possivel em contacto com a natureza. E que saibam ao que cheira a terra depois de chover ou ao que soa o silêncio ou o mar. E que observem as nuvens passar lentamente à frente da lua cheia. E que haja o que houver a sapiência é uma virtude inestimável. Tenho-vos visto crescer física e mentalmente e estou feliz por vos ter na minha vida. Desejo que vocês sejam tão felizes quanto eu sou. E o pai que eu sou hoje devo-o muito à vossa avó.

A minha mãe cuidou de mim como se cuidam as plantas. Regando-a todos os dias. Tratando-a com amor e carinho sem hesitar cortar as folhas velhas nas alturas certas. E se alturas houve em que a planta parecia querer parar de crescer ela nunca desistiu de a regar. E essa planta cresceu e já deu frutos que são vocês. E eu aqui no meio, olho para a minha mãe e para vocês e faz-me sentido que a vida seja assim, naturalmente simples, maravilhosa e contínua.

É por isso que eu nasci. Para viver, ser feliz e ter os meus filhos.

Beijinhos e essas coisas,

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A menina do mar


Há já algum tempo e à conversa com um amigo ao telefone falávamos sobre o estado das coisas. Das coisas todas. Do mundo, de uma maneira geral, sei lá. Sabemos que estamos a ser confrontados com coisas demais. Pelo menos é a primeira reacção. Isto é demais. Está a tomar umas proporções surreais. O que é que vai ser o futuro? Ai maezinha.
De facto se eu pensar bem... ora deixa cá ver uma referência... sim. A Eunice Munoz, na RTP 1, a ler, sentada numa cadeira, a história - “A Menina do Mar”. E eu sentado no chão da sala a olhar para o ecrã da televisão que só já não era a preto e branco porque os meus pais tinham adquirido o último avanço tecnológico – um plástico tricolor em degradê para vermos televisão a cores. Daí a Eunice ter a cabeça azulada, o tronco alaranjado e os pés esverdeados, se a memória não me falha. Ainda no outro dia a encontrei na rua e não fui de modas. Parei o carro e diriji-me a ela para lhe agradecer o facto de ela fazer parte da minha vida de uma maneira tão... tão... humana. Acho que é isso. Ela sorriu, agradeceu-me, e eu vim-me embora. Missão cumprida.


No outro dia também (para mim os dias não são uns atrás dos outros, é estranho mas para mim os dias são salteados, assim como os cogumelos salteados, baralham-se uns com os outros e formam uma amalgama. No fim como-os à colher e de boca cheia. É bom.) mas como dizia, no outro dia estava sentado à mesa com a minha mãe e os meus filhos. Já não sei se era a jantar ou a almoçar. Mas era a comer. Por vezes comer à mesa da cozinha tem esta particularidade. Não há televisão, nem telemoveis. Simplesmente quatro pessoas a comer e a falar. É giro.
Dei por mim a pensar que entre a minha mãe que aprendeu a escrever com um aparo e um tinteiro e os meus filhos que usam o computador estou eu aqui no meio. Tive um azar do caraças, senão repara, ainda me lembro que as secretárias da escola primária tinham lá um buraquinho para o tinteiro, mas eu usava uma caneta bic. Passados uns anos tinha acabado de tirar um curso de desenhador técnico em que usava canetas rotring e borrachas e lâminas e réguas e máquinas de calcular e pim: aparecem os computadores e os programas de grafismo. Que grande galo. Por meia dúzia de anos e eu tinha poupado fortunas em canetas.
Passados mais uns anitos, o Manuel, o meu filho de oito anos vai para a escola com uma mochila que deve pesar 500 quilos cheia de livros, quando podería perfeitamente tê-los todos no Magalhães. Mas não. O desgraçado tem de levar aquilo tudo com ele e para cumulo agora acho que tem que levar uma vez por semana os livros e o Magalhães. Isto não faz sentido absolutamente nenhum. A não ser que...
Há uns anos tentei entrar para uma editora. Aquilo é uma vergonha. Para nós, pais preocupados com a educação dos nossos filhos até faz sentido. Mas diz-me lá se não sentes o mesmo que eu? Haverá necessidade de continuar a mudar os livros todos os anos? Queres a verdade? Queres mesmo? Mas depois não me venhas com coisas. Vai para a praia e dá uns mergulhos que isso passa, a sério. Pois a verdade é só esta. As editoras escolares são um lobbie violento sem o mínimo de razoabilidade, que se escondem atrás de necessidades que eles inventam para continuar a produzir livros escolares que são eles próprios desconcertantes. Como é possivel livros novos todos os anos?
Eu tento educar os meus filhos o melhor que posso e sei. Dou-lhes valores, raízes, pilares, ferramentas e preparo-os o melhor que posso e sei. Mal eles comecem a pôr-se em bicos de pés, vou para a praia dar uns mergulhos. Eles também se hão-de adaptar. Nem imaginas as coisas que eles já sabem. É impressionante. E sabes que mais? Os meus filhos têm-me ensinado a viver este momento explosivo e curioso da sociedade actual. Eles fazem-no como quem come um pastelinho de nata. Às vezes ando para aqui atazanado com tanta informação e desinformação e de repente olho para eles e vejo-os na praia à procura de peixinhos no meio das rochas alheios a tudo e lembro-me da Eunice Munoz e da história da Menina do Mar. A vida é bela...

Beijinhos e essas coisas,

domingo, 4 de abril de 2010

A oitava regra

- Ó pai?
- Sim Manuel?
- Como é que são feitos os bebés?
- ???... Os bebés? Olha lá tu acreditas que é uma cegonha que os trás no bico?
- Claro que não pai. Isso é uma mentira.
- Pois é . Mas olha então vê lá se percebes à primeira. Ouve lá com atenção que isto não é fácil. Se tiveres duvidas vai perguntando está bem?... Olha lá? Não te ensinaram na escola?
- Sim. Mais ou menos. Mas eu não percebi bem.
- À excepção de uma pessoa que se saiba, é quando um homem enfia a pilita no pipi da mulher e depois atira para dentro do pipi dessa mulher um espermatozóide que vai por um tubinho até um ovito minúsculo que está dentro da barriga dela. Quando lá chega e se tiver sorte pois são muitos, consegue entrar na casca do ovito e depois começa a crescer.
- O que é uma excepção?
- Temos todos duas pernas certo?
- Sim
- Mas há um que tem três, percebes? Esse é a excepção.
- Mas há pessoas com três pernas, pai?
- Acho que não, mas se houvesse essa pessoa era a excepção, percebes?
- Sim.
- Então e essa mulher não foi preciso um espermatóide?
- Vai buscar o dicionário.
- Ó pai...
- Vai!
- Está bem... Es-per-ma-to-zói-de. Sim. Não foi preciso um espermatozóide entrar no ovinho?
“Bolas, estou tramado”. Ouve lá... Há muito tempo numa terra longe daqui, num lugar com muito sol e camelos e cabras e pedras, muitas pedras. Onde as pessoas não tinham televisão nem telemóveis nem torneiras nem super mercados. Onde não havia carros nem bicicletas. Onde não havia escolas nem livros, quer dizer havia alguns livros, mas só algumas pessoas sabiam ler. Vivia uma mulher chamada Maria. Essa mulher era casada com um carpinteiro chamado José e um dia tiveram um filho, ou melhor ela é que teve o filho porque o José não era o pai.
- Então quem era o pai?
- Sei lá Manuel. Sei lá. Olha! Se fosse há uns anitos atrás davam-lhe um bilhete de identidade a dizer filho de pai incógnito. Naquela altura como não havia bilhetes de identidade... sei lá Manuel. É uma confusão. Mas o facto é que a tal senhora ficou grávida. Dizem que foi um poder divino. Um milagre.


- E nasceu o menino Jesus. - Sim. Quando cresceu tornou-se num homem alto, forte e inteligente. Lembras-te de falarmos no outro dia quando vínhamos no carro sobre democracia, fascismo, nazismo, comunismo, capitalismo e essas coisas?
- Sim. Com a Maria. Lembro-me.
- Pois a mim parece-me que Jesus era assim uma espécie de político. Acho que ele defendia os que trabalhavam pois eram prejudicados pelos outros que só especulavam. Era assim uma espécie de Robim dos Bosques.
- O que é especular?... Já sei, espera... diz assim “Efectuar operações comerciais ou financeiras de que se espera obter lucros com a oscilação dos preços; negociar, comerciar.” Não estou a perceber pai.
- Uns malandros, era o que era. Acho que um dia Jesus terá entrado num templo, assim como uma espécie de Igreja e viu lá uns tipos a vender o pão mais caro do que os outros que vendiam o mesmo pão na rua. Ele não terá gostado disso e acho que os mandou para fora do templo. Ora aquilo era uma territa pequenita governada por um tipo romano chamado Pilatos.
- Esse nome é giro. Faz lembrar pilitas.
- Pois faz. Os vendedores malandros foram ter com o Pilatos que era assim uma espécie de polícia e fizeram queixa do Jesus a dizer que ele não os deixava venderem o pão dentro do templo. O Pilatos que até nem devia ser má pessoa, estava era chateado com o emprego que tinha e tinha saudades da terra dele, disse-lhes para serem eles a tratar do assunto e como os malandros eram mais ricos espetaram com o Jesus numa cruz.
- Só porque eram mais ricos?
- Pensa Manuel, pensa. Já falámos sobre isso. Sabes que há pessoas que por terem muito dinheiro fazem coisas que não são justas. Já sabes isso.
- Pois é... Ó pai! Então e a avó disse-me que ele depois morreu e depois rexuxitou.
- Ressuscitou. Pois. É estranho não é? Matam-no, enterram-no num buraco e passados três dias ele levanta-se e vai à vida dele. Tu achas isto normal?
- Ó pai! Eu acho que é mentira. O cão do tio morreu e foi enterrado. Os peixinhos do aquário quando morrem vão para o caixote do lixo. As pessoas quando morrem já não voltam a viver.
- Pensa Manuel, pensa pá. Tu tens de pensar sempre muito, está bem?
- Sim. Ainda há chocolate?
- Vai lá ver na gaveta.
- Também queres?
- Sim. Traz a tablete. Ó Maria? Onde é que está o comando da televisão?

Beijinhos e essas coisas,