segunda-feira, 4 de abril de 2011

A vida


Há tempos morreu a Virgínia. Era mãe, mulher, filha, amiga… sei lá… Era uma data de coisas inerentes ao facto de ser um ser humano e mulher. Morreu com uma doença daquelas tramadas – um cancro. Daqueles que não se conseguem tratar não obstante se tentar tudo. Morreu completamente dopada numa cama de hospital com a consciência que já não queria mais estar viva daquela maneira e por isso despediu-se no dia anterior a morrer. Pelos vistos ela sabia. Quis e morreu. A medicina tem esta situação ambígua de protelar a vida quando ela já não faz sentido.

No dia a seguir a minha filha ligou-me e pediu-me para a ir buscar à escola pois tinha chegado de uma aventura com os colegas de turma, em Sintra. Dormiram lá todos acampados e essas coisas. Pois nem de propósito, eu que até nem estava para ir ao velório por razões de incompatibilidade familiar dei por mim a virar para a Estrada da Luz e sem que me apercebesse, avisar os meus filhos que tínhamos de ir ter com o tio Zé pois a Virgínia tinha morrido. A Virgínia foi a segunda mulher do tio Zé. A primeira foi a tia Tó que está nos EUA. Nunca vi a Virgínia como tia nem nunca me ocorreu tratá-la por tia. Era a Virgínia. E morreu. Dela ficaram os filhos Francisco e Marta, meus primos, portanto. Quer dizer, o meu tio já tinha dois da tia Tó. Mais velhos do que eu. Depois separaram-se e ele conheceu a Virgínia e teve mais dois. O que por aí há mais é irmãos de pais diferentes. Dá cor à vida. É uma questão de hábito.

A Virgínia tinha o quê? A minha idade? Talvez. Eu não sou de ligar às idades das pessoas. Quando chegámos à igreja lá estava ela deitada no caixão coberta com um pano, umas velas à volta e umas flores no chão. Entrei, abracei o meu tio e pedi-lhe desculpa. É um assunto nosso que não explico. Mas senti-me bem. E não o larguei. Estive ali um minuto ou dois que parecem horas, a abraçá-lo. O que é que se diz a alguém que perde alguém? Fiz o mesmo com os filhos dela. E depois abracei a mãe da Virgínia. Ora foi exactamente esse o abraço que mais perplexo me deixou. Como é que se abraça a mãe de alguém que perdeu uma filha? As mães não deveriam perder as filhas. Não é natural. Que dor é essa de perder uma filha? O que é perder um filho? Eu tenho dois. Estavam lá. Levei-os comigo. O Manuel com nove anos e a Maria com doze. Alguém me perguntou porque é que eu os tinha levado para ali. Como nada respondi e simplesmente fiquei a olhar, a mesma pessoa respondeu por mim, que era para aprenderem. É curioso. Se não dissermos nada, às vezes a vida encarrega-se de responder por nós através dos outros.

Quando estávamos a vir embora, depois de nos despedirmos da família que estava espalhada na igreja e fora dela, depois de falarmos da morte e de doenças e dessas coisas que se costumam falar nestas ocasiões, depois de eu ter observado tudo o que a minha mente tinha de gravar naquele instante, dirijo-me para o carro com os meus filhos. O Manuel não faço ideia o que pensa sobre o assunto, mas a Maria, disse que estava orgulhosa de mim pois percebeu que eu pus de parte as divergências que tinha com o meu tio e fui mas foi abraçá-lo. Senti-me bem nesse instante. Senti-me bem comigo por ser quem sou, como sou, pelos filhos que tenho, pela família que tenho e pela vida que tenho.

Liguei o carro e arrancámos. Comentei com os meus filhos que a Virgínia não morreu, que o que morreu foi o corpo da Virgínia. Que por mais que eles olhem para mim só conseguem ver o meu corpo. A mim, talvez me sintam. E que a morte faz parte da vida, tentando desse modo convencer-me e preparar-me, a mim e a eles, para o inevitável - a vida.

Beijinhos e essas coisas,

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