quinta-feira, 21 de abril de 2011

O estado de felicidade



Há tempos entrei no Estabelecimento Prisional de Tires. Costumo ir lá por causa de um projecto que desenvolvo em parceria com a Direcção Geral dos Serviços Prisionais. Tem-me dado a conhecer algo extraordinário. Leva tempo. Às vezes parece que não se vai conseguir. Existe de facto um lado negro que insiste em querer fazer crer que não se consegue levar um projecto a bom porto. Mas passados quatro anitos deste projecto em que me envolvi percebo que acima de tudo é mesmo uma questão de fé, ou acreditar, se preferirem. E atenção que quando digo fé não estou nem de perto a colar-me a qualquer conotação religiosa. Não! Fé é algo em que passei a acreditar. Mesmo assim às vezes ainda sinto uma pontita de inveja aqui e ali. Um quê de “este gajo não faz nada” ou “este gajo não quer é fazer nada”. Isto porque o projecto em que me meti é bem pensado. Não é despesista. É razoável. Não é para ficar milionário. É para ser feliz e fazer as pessoas felizes. Foi assim que nasceu o projecto em que estou envolvido. É giro.

Nesse dia em que fui ao estabelecimento prisional, paro o carro à frente do portão como é costume e espero. O guarda prisional munido de um comando à distância abre o portão que desliza lentamente para o lado permitindo-me a entrada num mundo teoricamente feito para estar confinado ao perímetro dele próprio. Com regras bastante especificas, esse espaço alberga dois tipos de pessoas. As pessoas detidas e as pessoas que as detêm. Lá dentro o tempo passa de maneira diferente. Não leva mais nem menos tempo a passar. É diferente. Tenho tentado perceber mas ainda não consegui descortinar porque é que às vezes ao entrar ali parece que fico momentaneamente protegido. Bem sei que este estabelecimento específico não será o melhor exemplo, mas daqueles que vou conhecendo julgo que de uma maneira geral as pessoas detidas são tratadas como seres humanos ao invés das imagens que vejo na televisão do que se passa em estabelecimentos prisionais nos EUA. Adiante…



Entrei com o carro e observei o guarda prisional que neste dia está em pé no meio do pátio rodeado de sebes muito verdes e oliveiras pequenas plantadas há dois anos. O sol, a dar-lhe na farda azul e ele com um ar sereno e estranhamente feliz à espera que o portão feche atrás de mim. Por momentos e disse-lho quando saí do carro para o cumprimentar, fez-me lembrar a minha ex-mulher que trabalha na Av. da Liberdade, num banco. Eu trabalhei na Av. da Liberdade num jornal. Venha o diabo e escolha. Há muitos anos, na altura não tinha a consciência disso pois a sociedade consegue de facto toldar-nos o raciocínio, mas hoje ao olhar para trás compreendo-o, tinha uma vida da qual não gosto. Parecia que tinha tudo, mas o que de facto tinha era uma vida fútil e completamente padronizada. Há uns anos mudei. Teve de ser. O guarda em pé, de comando na mão, estava estranhamente feliz, ou tinha um sorriso na cara que espelhava serenidade. Falámos sobre a questão da felicidade e ele ainda me disse que ao longo dos anos foi morando cada vez mais perto de Tires e que agora até vinha a pé para o trabalho e ia almoçar a casa e tudo. Claro que ele deve ter os problemas dele mas naquele instante realizamos os dois a sorte que temos. Foi curioso.

Tanto eu como ele (o guarda) temos os dentes da frente ligeiramente afastados. Começa a ser raro, pois toda a gente quer ter os dentes unidos. É um pormenor particular. É giro. Enfim… a felicidade ou o estado de felicidade, como queiram, encontra-se nos lugares e momentos mais inesperados. Mas é bom... que se farta!

Beijinhos e essas coisas,

sexta-feira, 8 de abril de 2011

As dunas


Há tempos uma nave espacial desceu sobre a Costa da Caparica. Era uma nave invisível até para os radares mais avançados norte-americanos e portugueses. Ninguém deu por ela nem pelos seres que lá vinham dentro. Foi nos fins de Março. Num dia excepcionalmente quente para a época. A nave espacial era grande o suficiente para conter 6879 extra-terrestres. O termo de comparação tem de ser uma barata pois eles eram do tamanho de uma barata. Portanto não se pode dizer que a nave era enorme o suficiente para lá caberem 6879 pessoas mas sim grande o suficiente para lá caberem 6879 baratas que não sendo baratas eram uns seres não comparáveis a nada que se pareça na terra. Nem sequer respiravam e nem sequer se mexiam. Estavam ali quedos que nem uns pregos numa tábua. A única coisa que se deslocava de um lugar para o outro era a nave espacial que se pudesse ser vista era verde. Adiante.

Portugal tem perto de 800 quilómetros de costa dos quais 21, mais quilometro menos metro, chamam-se Costa da Caparica. Vá-se lá perceber porquê, porque há coisas que não se percebem mesmo e é assim, a nave espacial estaciona mesmo por cima de uma parte da praia que, vá-se lá perceber porquê, mas de certeza que tem que haver uma razão, deram-lhe o nome de 19 (dezanove). Ora não sei se vocês sabem, e se não sabem, estão como os seres alienígenas, é exactamente naquela praia, mas há outras, em que um dos comportamentos mais curiosos dos seres humanos do sexo masculino em particular se verifica. A nave espacial como que por magia, pois não há palavras que descrevam a velocidade com que ela ali apareceu, fica estática sobre a dita praia. Ninguém a conseguia ver mas ela estava lá. E os seres ordenaram às máquinas que filmassem tudo o que vissem e gravassem tudo o que pudessem, pois de retorno à casa deles teriam de prestar contas pelo desvio que fizeram por causa de um planeta com tanta água salgada.

Obedecendo às ordens dos seres e por eles terem receio da água do mar por causa do sal, a nave ficou a modos que a pairar sobre as dunas da tal praia 19 (dezanove). E filmou e gravou. O que para nós humanos são horas, para eles, os seres extra-terrestres, é imenso tempo, e portanto eles ficaram com uma imagem muito perfeita do que por cá se passa no planeta terra. Levaram de volta para os chefes deles, as imagens nítidas e sem comentários do que por cá se passa. Como a nave deles é evoluidíssima, fartaram-se de filmar de vários ângulos e perspectivas, com lentes potentíssimas que nós nem conseguimos imaginar. Uma loucura. Nem o Spielberg ou o Manuel de Oliveira algum dia lhes passará pela cabeça terem à sua disposição tal tipo de material de filmagem. Enfim… é preciso ser de uma galáxia muito distante e com um conhecimento muitíssimo evoluído.

Como o tempo é relativo, os seres extra-terrestres deixaram de o ser no instante em que chegaram ao planeta deles pois não faz sentido eles serem extra-terrestres na terra deles. Foi num piscar de olhos, para nós, claro, porque para eles foi uma eternidade, que retornaram às casas deles e tiveram que mostrar o que filmaram cá na terra. Os chefes deles não brincam e trabalho é trabalho. Acharam estranho o comportamento dos seres humanos. E claro, como não tiveram tempo de filmar mais nada, julgam o todo pela parte.

Aqui para nós que ninguém nos ouve, nem eles que já não voltam cá, ninguém tem nada a ver com o que se passa ali nas dunas, mas que é estranho é. Homens de barba rija ou não, gordos e menos gordos, com mais ou menos músculo, mais ou menos queimados do sol, a aparecer e desaparecer entre as dunas. Enfim… ninguém tem nada a ver com a vida dos outros, mas se forem à tal praia 19 (dezanove) não se admirem. Primeiro anda quase toda a gente nua, depois, vá-se lá entender, há homens que aparecem e desaparecem entre as dunas. É um comportamento curioso que de facto, só filmado. Ou então, como se pode observar da praia, alguns também lá andam a ver. Estive para lá ir ver o que é que eles andam a ver ou a fazer. Não tive coragem ou não me apeteceu.

Beijinhos e essas coisas,

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A vida


Há tempos morreu a Virgínia. Era mãe, mulher, filha, amiga… sei lá… Era uma data de coisas inerentes ao facto de ser um ser humano e mulher. Morreu com uma doença daquelas tramadas – um cancro. Daqueles que não se conseguem tratar não obstante se tentar tudo. Morreu completamente dopada numa cama de hospital com a consciência que já não queria mais estar viva daquela maneira e por isso despediu-se no dia anterior a morrer. Pelos vistos ela sabia. Quis e morreu. A medicina tem esta situação ambígua de protelar a vida quando ela já não faz sentido.

No dia a seguir a minha filha ligou-me e pediu-me para a ir buscar à escola pois tinha chegado de uma aventura com os colegas de turma, em Sintra. Dormiram lá todos acampados e essas coisas. Pois nem de propósito, eu que até nem estava para ir ao velório por razões de incompatibilidade familiar dei por mim a virar para a Estrada da Luz e sem que me apercebesse, avisar os meus filhos que tínhamos de ir ter com o tio Zé pois a Virgínia tinha morrido. A Virgínia foi a segunda mulher do tio Zé. A primeira foi a tia Tó que está nos EUA. Nunca vi a Virgínia como tia nem nunca me ocorreu tratá-la por tia. Era a Virgínia. E morreu. Dela ficaram os filhos Francisco e Marta, meus primos, portanto. Quer dizer, o meu tio já tinha dois da tia Tó. Mais velhos do que eu. Depois separaram-se e ele conheceu a Virgínia e teve mais dois. O que por aí há mais é irmãos de pais diferentes. Dá cor à vida. É uma questão de hábito.

A Virgínia tinha o quê? A minha idade? Talvez. Eu não sou de ligar às idades das pessoas. Quando chegámos à igreja lá estava ela deitada no caixão coberta com um pano, umas velas à volta e umas flores no chão. Entrei, abracei o meu tio e pedi-lhe desculpa. É um assunto nosso que não explico. Mas senti-me bem. E não o larguei. Estive ali um minuto ou dois que parecem horas, a abraçá-lo. O que é que se diz a alguém que perde alguém? Fiz o mesmo com os filhos dela. E depois abracei a mãe da Virgínia. Ora foi exactamente esse o abraço que mais perplexo me deixou. Como é que se abraça a mãe de alguém que perdeu uma filha? As mães não deveriam perder as filhas. Não é natural. Que dor é essa de perder uma filha? O que é perder um filho? Eu tenho dois. Estavam lá. Levei-os comigo. O Manuel com nove anos e a Maria com doze. Alguém me perguntou porque é que eu os tinha levado para ali. Como nada respondi e simplesmente fiquei a olhar, a mesma pessoa respondeu por mim, que era para aprenderem. É curioso. Se não dissermos nada, às vezes a vida encarrega-se de responder por nós através dos outros.

Quando estávamos a vir embora, depois de nos despedirmos da família que estava espalhada na igreja e fora dela, depois de falarmos da morte e de doenças e dessas coisas que se costumam falar nestas ocasiões, depois de eu ter observado tudo o que a minha mente tinha de gravar naquele instante, dirijo-me para o carro com os meus filhos. O Manuel não faço ideia o que pensa sobre o assunto, mas a Maria, disse que estava orgulhosa de mim pois percebeu que eu pus de parte as divergências que tinha com o meu tio e fui mas foi abraçá-lo. Senti-me bem nesse instante. Senti-me bem comigo por ser quem sou, como sou, pelos filhos que tenho, pela família que tenho e pela vida que tenho.

Liguei o carro e arrancámos. Comentei com os meus filhos que a Virgínia não morreu, que o que morreu foi o corpo da Virgínia. Que por mais que eles olhem para mim só conseguem ver o meu corpo. A mim, talvez me sintam. E que a morte faz parte da vida, tentando desse modo convencer-me e preparar-me, a mim e a eles, para o inevitável - a vida.

Beijinhos e essas coisas,

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sinais dos tempos


Há tempos deixei de fumar. É relativa esta coisa do tempo, quando nos propomos deixar de fumar. O tempo transforma-se. Adquire vida própria e castiga-nos violentamente. Leva mais tempo a passar o raio do tempo. Não é fácil mas também não tem sido muito difícil. Das outras duas vezes que deixei de fumar foi terrível. Na altura trabalhava com um grupo de pessoas que até me pediam para voltar a fumar tal era o meu estado. Descarregava a minha frustração de estar à espera que me passasse a vontade que tinha de fumar em cima dos meus colegas. Não me calava. Eu, que de mim e às vezes tenho a noção de que falo muito, naquela altura parecia uma gralha, credo.

Curiosamente, da primeira vez deixei de fumar sem usar substitutos do tabaco comi muitos chupa-chupas com pauzinho que metia na boca para disfarçar a vontade de ter o cigarro entre os dedos e na boca. Foi o diabo! Mas passou, e estive dois anos sem fumar. Da segunda vez, pois a carne é fraca e voltei a fumar, já havia umas pastilhas elásticas com nicotina horríveis que me provocavam uma espécie de refluxo mas que me ajudaram a reduzir o espaço temporal que medeia o inicio e fim do processo de desabituação à nicotina e todos os hábitos que lhe são inerentes. Mesmo assim ainda foram um bom par de meses. Dessa vez estive um ano e meio sem fumar. Voltei a fumar basicamente porque, e volto a repetir, a carne é fraca.

Ora desta vez foi inesperado, ou não que eu já andava com essa ideia há algum tempo. No dia do meu aniversário e depois do almoço um amigo saca de um cigarro e dá umas passas. A seguir mete o cigarro no bolso e continua a falar. Assim! Como se nada fosse… Espera! Alto lá! Mostra lá isso, pedi-lhe. E ele apresentou-me algo extraordinário. Algo que mostra de facto a capacidade do ser humano em prosseguir a sua louca viagem sabe-se lá para onde usando o que quer que lhe venha à cabeça para lá chegar. Quero com este raciocínio brutal chegar ao pensamento mais simples que diz que - se não for por aqui é por ali, mas é sempre em frente. Sempre. A mente humana quando lhe apetece cria coisas extraordinárias. Para o bom, para o mau ou até para o nada.

Se nunca viste tal coisa, hás-de ver. É impossível que não o vejas um dia destes. Olha! Eu por exemplo, comprei um e agora fumo em todo o lado. É bestial. No intervalo do filme no cinema. No restaurante. Nas lojas. É impressionante. Passei a fumar em todo o lado. Tem uma bateria que se carrega numa tomada ou no computador, e espera, há mais! Quando se dá uma passa a pontinha ilumina-se e até parece que está quente, e pasme-se, sai fumo. Ou vapor. Eu sei lá. Para já não estou interessado em entender a mecânica da coisa que me parece elementar. “Ah! Mas isso não é deixar de fumar, pois afinal de contas continuas a meter nicotina lá para dentro” – dirão alguns. Quero lá saber. Deixei de usar o isqueiro. Deixei de ter as mãos e a boca e a roupa e a casa e o carro a cheirar a nicotina. Deixei de ter de comer umas pastilhas elásticas de mentol por causa do hálito.

Achas estranho eu estar a dar passas num cigarro de metal? Então e o que achas inalar fumo? Se pensarmos bem, não faz sentido absolutamente nenhum inalar fumo. Foi azar o meu, alguém ter inventado os cigarros. Mas foi sorte a minha, alguém ter inventado o cigarrito electrónico. Tem-me ajudado na batalha da desabituação. Adoro o ser humano e a sua ilimitada capacidade para andar para a frente… sempre. Fiz 46 e na melhor das hipóteses vivo mais o quê? 20? 30? Adorava ver os carros a voar. Isso é que era! Despachem-se por favor. Não quero perder pitada.

Beijinhos e essas coisas,