terça-feira, 1 de março de 2011

Dr. Quixote


Há tempos dirigi-me a uma repartição pública. Entrei e esperei. Na sala estavam três pessoas. Comigo do lado de cá do balcão eramos quatro. Um homem fardado dedilhava num teclado, enquanto que as senhoras estavam as duas sentadas atrás das respectivas secretárias. Esperei. Enquanto esperava pensei porque é que nem olharam para mim quando entrei. Enquanto continuei à espera também pensei que ali estava espelhado o que é o funcionalismo público. Que é por causa destas e de outras que o país está como está. Enfim, sabem como é, quando se espera nas repartições públicas pensa-se muito no funcionalismo público e no estado da nação. Mas atenção, há sempre excepções à regra, sempre.

Finalmente, e como nenhuma das três pessoas me perguntava nada, perguntei eu - “É possivel falar com a pessoa responsável?”. O homem fardado foi como se de uma corrente de ar se tivesse tratado. Uma senhora respondeu – “Com quem deseja falar?”. E pronto. A partir daqui qualquer dialogo é uma questão de sorte. A partir do momento em que a resposta à minha pergunta é outra pergunta passa-me pelos olhos as imagens que vou vendo daqueles países árabes em que parece que as coisas funcionam de uma maneira estanhamente parecida com corrupção. Não sei explicar mas é sempre a sensação estranha que tenho.

“Pretendo falar com a pessoa responsável”, repeti. E a resposta teve o peso de décadas de ditadura, fascismo, ignorância, imbecilidade, corrupção, pobresa, e mais uma série de adjectivos próprios de uma sociedade tacanha e pequenina, imensamente pequenina. Mas atenção, não se pense que vivemos num sistema assim. Não. Agora vivemos em total liberdade, vivemos num sistema democrático aberto. Os meus filhos lá sabem o que é depender da boa disposição do funcionário público, ou da relação familiar, ou da cor política, para se conseguir obter qualquer coisa do estado? Eles nem imaginam o que era esse tempo, curiosamente parecido com o que se vai vendo ultimamente na televisão por causa dos protestos de rua contra esses sistemas do norte de África, que ao que parece, estão a tentar alterar, coitados. Adiante. Dizia eu que a resposta teve o peso de uma cultura com décadas e que quer queiramos quer não ainda persiste – “O doutor não está.”

Ultimamente tenho-me lembrado do D. Quixote, à falta de melhor, um castelhano. Tenho tentado lutar contra “moinhos de vento” que não se vêm mas existem. Estão lá. Esta senhora é um enorme “moinho de vento”. Com a sua resposta aplicou-me um golpe que só não foi mortal pois a capacidade dela é relativa, senão eu teria certamente desaparecido no momento em que interferi no decorrer pacato da sua vida profissional. Mas eu, armado em D. Quixote, perguntei-lhe em que é que o doutor era formado pois assim eu estaria mais bem preparado para falar com ele. Enquanto ela me observava, olhos nos olhos sem pestanejar, eu continuei explicando-lhe que o assunto que me levava ali seria abordado de maneira diferente caso o doutor fosse formado em contabilidade, literatura, psicologia, marketing, sei lá. “Pois. Mas o doutor não está. Terá de vir amanhã”.

Esta tradição arcaica portuguesa de nos referirmos às pessoas por doutores, engenheiros ou majores é incompreensivel para muitos europeus. Já os norte-africanos entendem perfeitamente. A mim o que me surpreende é que aquela senhora se anula voluntariamente e em público. É uma estranha relação de convivencia conivente entre os que são qualquer coisa e os que não são qualquer coisa sendo outra coisa qualquer. Para aquela senhora a responsabilidade de tudo é do doutor... para o bem e para o mal. E ela é assim uma espécie de Pilatos, sempre com as mão desinfectadas. No entretanto eu sou assim uma espécie de “o que é que este quer a esta hora?”.

“Dói-me o rabo, Sancho. E a ti?”
“A mim também mestre, ela era rija”.
“Voltamos cá amanhã?”
“O mestre é que sabe mas eu não vinha. Não vale a pena, ela é má.”
“Ok. Vou ligar os cavalos e vamos embora.”
“Ó mestre... eu hoje posso ir consigo? Ando cansado.”
“Está bem podes. Mas senta-te atrás, aperta o cinto e abre a janela. Tens mesmo de tratar desse cheiro dos pés pá. Isso já não se aguenta.”

Beijinhos e essas coisas,

1 comentário:

  1. Quando eu conseguir parar de rir, comento!!!!
    Boa Zé!
    Muito Bom.
    Vou rir mais um bocado!

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