quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A professora


Há tempos foi-me pedido que ajudasse o Manuel a fazer um trabalho para a escola. Era um trabalho sobre o D. João III, que tinha de ser feito no “Magalhães” – o computador. Estivemos a jogar uns joguitos no dito cujo para aquecer. Depois pedi-lhe para me mostrar o que já tinha feito. Não lhe perguntei como é que o fizera, mas o facto é que tinha um documento em “Word” com texto copiado da Internet. Como eu não tenho Internet em casa, limitei-me a trabalhar no que ele tinha feito. Também não lhe perguntei se o tinha feito sozinho ou com a ajuda de alguém, mas pareceu-me óbvio que teria tido a ajuda da mãe ou da irmã, não sei.

Ajudar o Manuel nos trabalhos de casa não é tarefa fácil. Percebi isso pois de cada vez que lhe pergunto se tem que estudar fica logo triste. É impressionante. É capaz de inventar algo com dois atacadores velhos e duas bolas de plástico dos ovos de chocolate “Kinder”. É capaz de se distrair com objectos simples como relógios velhos, caixas de cartão usadas e outros que não lembram ao diabo. A irmã, que é óptima aluna, às vezes até brinca com o que ele inventa. Tem uma capacidade nata de pegar em coisas e dar-lhes outras utilizações e é bem capaz de se distrair com a capa do livro que está descolada no cantinho em vez de ler o livro. Enfim… cada um é para o que nasce. E o Manuel nasceu para descobrir e inventar coisas.

Ora, quando lhe pedi para ler o trabalho que tinha preparado percebi imediatamente que ele não entendia quase nada do que lá estava escrito. Então, e devagar, começámos a tentar descobrir o significado de algumas palavras e conceitos. Fui arranjar exemplos que até a mim me surpreenderam mas que ele lá ia entendendo. Como é que se explica a Inquisição a um miúdo de nove anos? A mim ocorreu-me dizer-lhe que era uma polícia especial da Igreja para tomar conta das pessoas e as matar na maioria das vezes ou mandar matar. Ora o D. João III, ao que parece, não gostava muito dos judeus (pelos vistos a história é recorrente) e vai daí, fez um contrato com a sede da Igreja em Roma e enviaram para Portugal uns inspectores para matar os judeus ricos e depois dividiam o dinheiro entre eles.

O que pensará uma professora que tem dentro de uma sala minúscula 25 almas com nove anos e é obrigada a ensinar o que o sistema insiste em querer fazer acreditar que é “o básico para se ser um cidadão normal”? Eu na quarta classe tinha o livro único e em casa um telefone fixo e uma televisão a preto e branco com dois canais. Nessa altura a nave espacial que aterrou na Lua tinha menos capacidade informática que um telemóvel e eu brincava com os meus amigos na rua. Quando o Manuel vem ao meu “escritório”, dou com ele a brincar com o seu melhor amigo e colega da escola num jogo “online” chamado “Pinguim”. E a professora quer que ele desenvolva um trabalho sobre o D. João III, “o Piedoso”!

Será sem dúvida por não conhecermos ou compreendermos correctamente o passado que somos o que somos. Uma nulidade cultural sem fim. Mas a culpa, porque a há, não é dos miúdos – é nossa, que ainda não aceitámos alterar o estado da nação. Não são 30 anitos de uma democracia alicerçada sabe-se lá onde que vão alterar 48 anos de uma política que teve como pilar a anulação da cultura de um povo.

Valha-me Deus… ainda vou preso.

Beijinhos e essas coisas.

1 comentário:

  1. Oh Zé, gostei muito do que li, mas agora como estou a fazer companhia a uns milhões de portugueses que estão a assistir à dissecação via televisão, em pelo menos 2 canais em simultâneo, do caso estranho de um sr que vai para Nova Iorque e que lá tem um final estranho. Enfim isto sim importa mostrar aos Portugueses.
    Valha-me Deus, também ainda vou preso!
    Safa!

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